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Uma homenagem a Kentaro Miura e Berserk

No último dia 20 a editora japonesa Hakusensha anunciou em sua conta oficial no Twitter a morte de Kentaro Miura, autor do mangá Berserk, no dia 06 de Maio de 2021, aos 54 anos, vítima de uma dissecção aguda da aorta.

Gênio do genero
Fonte O Vicio

Pra mim é muito díficil expressar em palavras ou dizer algo que não tenha sido dito sobre essa tragédia, uma vez que, como muitos, fui pego de surpresa e tomado por uma grande tristeza ao saber da notícia. A obra de Miura é um caso ímpar no meio do entretenimento, editorial e cultural, sendo uma obra com extrema influência e que ajudou a definir novos tropos na literatura de ficção bem como fundamentar as características de todo um gênero.

Seus personagens eram marcantes e carismáticos, bem como desprovidos de bidimensionalidade trazendo uma camada de profundidade e drama às suas narrativas que influenciou e continua influenciando gerações de outros mangakás, autores e cineastas. Seu adeus súbito e prematuro, já está marcado como um dos dias mais sombrios do ano de 2021 na memória da cultura popular.

Dessa forma eu decidi escrever este artigo em homenagem a sua obra e a sua história, bem como as suas influências que ajudaram a tornar Berserk um clássico contemporâneo, considerado por muitos – incluindo este que vos fala – uma das maiores obras de ficção de todos os tempos. 

Kentaro Miura nasceu na cidade de Chiba, província de Chiba, Japão, em 1966.
Em 1976, com a idade de 10 anos, Miura fez seu primeiro mangá, intitulado Miuranger, que foi publicado para seus colegas em uma publicação escolar; o mangá acabou abrangendo 40 volumes. Em 1977, Miura criou seu segundo mangá chamado Ken e no michi (剣 へ の 道 O Caminho para a Espada), usando tinta nanquim pela primeira vez. Quando ele estava no ensino médio em 1979, as técnicas de desenho de Miura melhoraram muito quando ele começou a usar técnicas de desenho profissionais. Seu primeiro dōjinshi foi publicado, com a ajuda de amigos, em uma revista em 1982.

Nesse mesmo ano, 1982, Miura matriculado com um currículo artístico no Ensino Médio, começou a publicar sua obra junto de outros colegas em folhetos da escola, tendo seu primeiro dōjinshi publicado em uma revista de fã-produção. Em 1985 ele apresentou um de seus mangás para avaliação na universidade de Nihon a fim de matricular na faculdade de arte, ele foi admitido, esse mesmo projeto lhe rendeu o título de melhor autor da revista Weekly Shonen – famosa por títulos como Jujutsu Kaisen, Naruto, Hero Academia e One Piece.

Kentaro Miura raramente era capturado em fotos. Foto: Junichi Saji/Hakusensha/Shueisha / Meio Bit

Em 1988 Miura publicou um mangá de 48 páginas intitulado de Berserk Prototype, que viria ser a gênese de sua obra mais famosa, em 1989, já com um doutorado, ele publicou na edição de outubro da revista Animal House o primeiro capitulo de Berserk , com um sucesso relativamente limitado, contudo a obra experimentou um pico de popularidade depois de ser serializada na revista Young Animal em 1992 com o lançamento do arco de história “The Golden Age” e, finalmente tornando-se o grande sucesso que é hoje, fazendo com que Miura fosse reconhecido como um dos mais proeminentes artistas de mangá contemporâneos. Sendo que durante seus últimos anos, Miura se dedicou exclusivamente a trabalhar em Berserk. Em 2002 Miura recebeu o segundo lugar no prêmio cultural Osamu Tezuka, um dos maiores para os mangakás, pela excelência de sua obra que veio a ser adaptada em anime duas vezes, como uma trilogia de filmes em animação e numerosos jogos para diversas plataformas. Em 2013 foi forçado a se afastar da obra por problemas de saúde, mas retomou a publicação no ano seguinte. (Informações obtidas no site Berserk Project)


Sobre a Obra Berserk é uma obra complexa dividida em numerosos arcos e sagas, com muitos personagens relevantes, de modo que é particularmente difícil fornecer uma sinopse que não entregue muitos spoilers, mas seu tivesse que resumir e simplificar a obra eu diria que… Berserk conta a história de Guts um espadachim solitário, último sobrevivente do Bando do Falcão, uma proeminente companhia de mercenários, que vaga sem descanso pelo mundo perseguido por forças sombrias em busca de vingança contra Griffith, o antigo líder do bando que traiu seus irmãos de armas em troca de poder.

Dito isso, uma das questões que eu gostaria de abordar é a arte do mangá que está em um nível de excelência o qual eu só posso descrever como espetacular, muito do que se sabe do próprio universo da obra não é expresso apenas pelos diálogos dos personagens, como também pelas criaturas representadas nela, pelos cenários e a forma como esses elementos são posicionados em cada quadro do mangá. Mesmo as mais grotescas figuras e representações que povoam as páginas de seus 40 volumes carregam um nível de detalhamento e destaque que os tornam nada mais do que obras de arte, ainda que macabras em muitos pontos – é fortemente desaconselhado que você, caro leitor, mostre isso para sua mãe ou irmão(ã) menor de idade – o que leva o leitor a uma imersão extrema pela sensação de realismo que essas imagens representam, provocando em nós uma reação semelhante a dos personagens ao contempla-las.

Em Berserk o horror não é exclusividade dos personagens, mas uma experiência compartilhada com o leitor. O segundo ponto a ressaltar é a própria natureza sombria da obra, sendo a própria considerada a referência seminal do gênero Dark Fantasy e Grimdark Fantasy, sendo que para muitos, este último foi criado a partir das ideias apresentadas em Berserk. O mundo de Kentaro Miura é sombrio e desesperador e traz consigo uma carga pesada de medievalismo, como poucas obras conseguiram igualar, onde vemos reinos, ordens de cavalaria, cortes, bem como o dia a dia da plebe e das tropas de mercenários que lutam a maioria das guerras. Não há qualquer tipo de glamourização de qualquer aspecto que se possa imaginar de uma fantasia, mesmo os seres mais fantásticos possuem um lado sombrio capaz de chocar o leitor, toda ação, todo poder obtido ou combate travado traz consequências imediatas e futuras para os personagens, não há sensação de segurança ou de refúgio em momento algum, quando se percebe calmaria é porque logo a tormenta se aproxima.

Riqueza nos detalhes e teor melancólico e sombrio


Esse clima e detalhes da construção do enredo do mangá, somados a sua arte levam o leitor a mergulhar fundo no universo e nos dramas de Gutts e seus companheiros, cada luta é desesperadora pois qualquer um pode morrer ao menor deslize, as criaturas sobrenaturais quando aparecem parecem invencíveis e muito além das capacidades dos protagonistas, não é incomum vermos pessoas entrando em desespero ou sucumbindo a loucura diante dessas situações. A população de modo geral é ignorante e completamente alienada ao mal que a cerca, assim como as maquinações políticas ou as causas pelas quais lutam, no fim todos estão tentando sobreviver mais um dia. Nem mesmo os civis e pessoas inocentes estão salvos das tragédias, muitas vezes acarretadas pelos protagonistas.

A violência aqui, em todos os sentidos, é explicita. Vemos sangue, vísceras, desmembramentos, tortura e estupro com frequência e em contextos que sabemos, com uma nota de tristeza, serem reais não apenas no período feudal como também nos dias de hoje, e como dito antes ninguém está imune a isso, especialmente os protagonistas. O terceiro ponto é a grande pérola de Berserk, seus personagens e seu enredo. É impossível desassociar esses dois elementos, pois a história de Berserk é apoiada na relação de três personagens: Guts, Caska e Griffith, com novos atores sendo adicionados no conflito que cerca esses indivíduos que assumem diferentes proporções no decorrer dos arcos e sagas que compõe a obra. Seus relacionamentos são complexos e profundo, cheios de reviravoltas e instabilidades, diferente da maioria das obras shonen, Berserk é um mangá que respira desenvolvimento de personagens, sendo que mesmo os coadjuvantes podem despertar uma profunda empatia no leitor, bem como alguns dos vilões da história, os quais por mais que amemos odiar, acabam tendo toda sorte de motivações complexas e humanas para fazer o que fazem, coisas horrendas é verdade, mas ainda sim humanas.

Quanto a história em si, ela é dividida em arcos, sendo que o mangá se inicia no período presente da narrativa, no arco do Espadachim Negro, e depois retrocede para o arco “Era de Ouro”, onde o leitor conhece a história do nascimento do protagonista, sua infância e seu período com o Bando do Falcão, uma narrativa rica e trágica como se poderia esperar de uma tragédia grega, que aqui leva o espectador em uma jornada de altos e baixos, de vitórias e desgraças consecutivas que alimentam uma revolta no público tão grande quanto a do protagonista. Por essas e outras que Berserk é considerado por muitos como a “Bíblia da Fantasia Sombria”. As Influências Claro que eu não poderia concluir essa homenagem sem citar algumas das influências usadas na concepção do mundo sombrio de Kentaro Miura. Em vida o autor nunca listou ou explicou em detalhes quais foram as suas referências na criação do mangá, contudo muitos fãs e estudiosos de sua obra destacaram elementos, ao longo dos anos, similares, análogos ou que referenciavam outras obras ocidentais, dentre as quais vale destacar.

Conan, O Bárbaro

Um guerreiro furioso que empunha uma grande espada com o qual combate hordas de inimigos é uma descrição que pode muito bem ser aplicada tanto a Guts quanto ao Cimério de Robert E. Howard, além da fúria e predileção por espadas ambos compartilham do ofício como mercenários e de sua capacidade de sobrepujar inimigos sobrenaturais apenas com sua própria perícia e determinação, além de que ambos se destacam por sua força.

Há também momentos chave ilustrados no mangá que fazem referência direta ao filme do bárbaro de 1982 protagonizado pelo rei dos marombas Arnold Schwarzenegger, no qual o próprio Guts parece ter seu porte físico inspirado. O desejo de Griffith em ter seu próprio reino também é um desejo em comum dele com Conan, que chegou a de fato concretizar sua ambição.

Corum Jhaelen Irsei

Corum Mão de Prata é um personagem criado pelo autor britânico Michael Moorcock , como o príncipe de uma nobre linhagem de uma raça de seres humanoides, portando sempre seu icônico manto escarlate. Protagonizou duas trilogias de romances fantásticos e ainda é uma parte fundamental do multiverso desenvolvido pelo autor, sendo um dos personagens a encarnar o Campeão Eterno.

A trajetória do personagem em si tem poucas similaridades com a de Guts, contudo ambos compartilham o fato de serem personagens que foram traídos por aqueles em que mais confiavam e terem sido mutilados. Corum em especial teve um olho e uma mão decepados sob tortura, enquanto Guts não tem um braço e um dos olhos, ambos também usam de próteses mecânicas para continuar empunhando suas armas em batalha.

Mythos de Cthulhu

O sobrenatural em Berserk é banhado por elementos de terror e do horror cósmico, os quais passamos até alguma elucidação com a Schierke, uma jovem bruxa que adentra o grupo de Guts, mas mesmo após isso o fantástico ainda traz um clima de desconforto e loucura típicos dos textos de H.P. Lovecraft, o que acaba nos direcionando uma mensagem clara:


O homem não tem poder algum sobre a realidade em que vive, nem mesmo o seu próprio destino. Mesmo a realidade fantástica não traz um alívio dos sofrimentos e horrores do mundo material e cotidiano, na verdade o que se encontra lá é pior do que qualquer coisa que se pode imaginar, mesmo seres como fadas e sereias possuem algum tipo de aspecto sombrio atrelado a si.

Essa influência também pode ser percebida nos traços do mangá especialmente na representação dos “apóstolos”, os principais antagonistas sobrenaturais da obra, bem como em seres como Ogros, Trolls, o Kelpie, O Deus do Mar ou mesmo algumas das invocações de Schierke, como o Senhor das Raízes Podres, muito semelhante a Cthulhu e a Roda de Fogo, que em última análise parece uma versão infernal da Cor que Veio do Espaço.

A Companhia Negra

Sem dúvida umas das obras seminais da Fantasia Sombria, onde podemos ver uma influência direta sobre Berserk, uma vez que essa série de livros segue as aventuras de uma companhia mercenária em um mundo medieval fantástico e sombrio. Elementos como a presença de uma classe obscura de entidades sobrenaturais, uma magia muitas vezes nefasta e incompreensível, bem como o fato do cenário ser habitado apenas por humanos são alguns pontos de similaridades entre as obras, para citar apenas os mais óbvios deles.

Conclusão. Acho que está mais do que claro o quanto eu gostaria de continuar falando sobre essa obra soberba e fenomenal, contudo sei que parte de nosso público leitor ainda não conhece o mangá, de modo que procurei minimizar os spoilers e atiçar sua vontade de lê-lo. Espero que eu tenha sido bem-sucedido. Com o trágico falecimento de Kentaro Miura é muito provável que Berserk jamais tenha um final, espero estar errado, contudo não deixe que esse fato o impeça de conhecer o trabalho desse grande autor, são 363 capítulos de uma narrativa épica e intimista cheia de horror e sofrimento, mas também cheia de beleza, sacrifícios heroicos e redenções inesperadas.

Não posso começar a descrever como o simples fato de você, caro leitor, estar lendo este artigo foi influenciado por Berserk, muitos outros artistas e escritores também podem dizer o mesmo, e apesar da imensa tristeza de dar adeus a um gênio como Kentaro Miura de modo tão melancólico e precoce, me conforta saber que o seu legado é imortal e vai continuar influenciando e enriquecendo as obras de outros, porque não só eu, mas muitos outros estarão aqui para dizer que fomos inspirados por ele, que rimos, choramos e torcemos por seus personagens como se fossem nós mesmos e que alegramos com suas conquistas. Personagens que no fim, apesar de todo o sofrimento pelo qual passaram, continuam encontrando forças para seguir em frente. Uma lição que hoje em dia se faz mais necessária do que nunca.

Sayōnara masutā Miura, anata no nokori no bubun ni heiwa ga arimasu yō ni, soshite watashitachi ni anata no idaina isan o nokoshite kurete arigatō.


さようならマスター三浦、あなたの残りの部分に平
和がありますように、そして私たちにあなたの偉大
な遺産を残してくれてありがとう。

Para mais textos de Stefan, confira aqui.

Stefan Costa
Stefan Costa
"Professor de Geografia, leitor voraz, tagarela de muitas ideias e aspirante a escritor."
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