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Quem foi que botou Ciência na minha Fantasia?

Pode parecer estranho que eu queira falar aqui sobre ciência dentro do ambiente da fantasia. Afinal os dois conceitos são diametralmente opostos, conduto eu garanto para você, caro leitor, que este não é um artigo chato e tecnicista de como impor a realidade na sua narrativa ou jogo de RPG, mas sim resgatar um conceito muito antigo, mas que hoje tem ares de novidade.

Direitos de imagem reservados ao artista, Ilustração by: ANDRÉE WALLIN

Hoje eu vim lhes falar sobre a desconhecida e subestimada fantasia cientifica. Eu sei que soa esquisito, mas peço que antes de dar prosseguimento na leitura você se dê ao trabalho de entrar no google e procurar imagens das primeiras aventuras do D&D lá dos anos 70, ou sobre Metamorphosis Alfa, John Carter de Marte, Scrapped Princes ou então de Numenera.

Reparou em alguma coisa?

Todas essas obras trazem uma amalgama de elementos característicos da ficção cientifica, como naves, pistolas de raios, robôs e alienígenas com elementos típicos da fantasia, como espadas, donzelas em perigo, magia e criaturas monstruosas e isso não é uma coincidência.

O termo “fantasia científica” se populariza a partir das publicações das pulp magazines, como é caso de Magic, Inc. ou Slaves of Sleep. Sendo dessas revistas que clássicos como Conan, o Bárbaro, e os Mythos de Cthulhu emergiram, dentre outros títulos, menos famosos, mas também muito relevantes.

Imagem representando o monstro Cthulhu. direitos reservados ao autor, Arte by: ANDRÉE WALLIN

Essas revistas traziam aventuras na forma de contos de ficção científica e de fantasia, e não raro, de ambos, sendo muito comum que diversas narrativas, como as supracitadas, fizessem a como a junção do elemento fantasioso e a realidade científica no mesmo texto.

No princípio da literatura fantástica – quando tudo era mato – não havia uma divisão clara entre os gêneros, de modo que o horror, a fantasia e a ficção científica se misturavam nas narrativas, a linha que separava um do outro era, e de certo modo podemos dizer que ainda é, muito mais tênue do que se imagina.

Nos acostumamos com rótulos, definições e características como uma forma de entender e categorizar a leitura que estamos consumindo, contudo, é preciso lembras que para os autores de ficção no início do século XX, essa separação simplesmente não existia, pelo menos não de maneira rígida como agora.

Batendo Espadas e Pistolas de Raio no Liquidificador

Inicialmente costumamos diferenciar os gêneros da ficção partindo da simples suposição de que a Ficção Científica explora e extrapola a ciência conhecida enquanto a fantasia explora o sobrenatural. Embora a distinção pareça clara, e até certo ponto ela é, isso é apenas uma impressão.

A fantasia científica não tem definição exata justamente por ser um gênero que transita entre as características da fantasia e da ficção científica. Traçar uma linha entre a ficção científica e a fantasia não torna as coisas mais claras, uma vez que ambos os gêneros usam mundos inventados, criaturas inteligentes não-humanas e monstros como antagonistas.

Enorme dragão como vilão? direitos reservados ao autor, Arte by: ANDRÉE WALLIN

Dessa forma fantasia científica pode ser retratada como uma história de ficção científica que se afastou tanto da realidade que passa a “parecer” fantasia, ou uma história de fantasia que está tentando ser ficção científica (tipo Star Wars).

Isso é plausível a partir do momento em se entende que a diferença entre o que é “fantástico” e o “científico” é uma questão de convenção. Hiperespaço, máquinas do tempo e cientistas são elementos da ficção científica enquanto dragões, amuletos mágicos e magos são alegorias da fantasia. O que importa não é o efeito em si, mas o universo maior que ele pretende evocar.

Essa ficção é parte da literatura de base que inspirou o D&D nos anos 70 (consultem o Apendix N), sendo dessa forma um elemento vital na construção do RPG como conhecemos hoje, o que pode ser observado descaradamente nas primeiras aventuras e cenários do hobby, mesmo hoje Blackmoor e GreyHawk são inspirações para centenas de autores e jogadores, sendo um verdadeiro legado cultural da dupla Dave Arneson e Gary Gygax.

Ilustração de GreyHawk, todos direitos reservados ao autor

A Ciência da Magia

Ao invés de você, caro leitor, ser perder em complexas explicações metafísicas para inserir habilidades ou poderes aparentemente sobrenaturais na ficção científica há três modos simples de fazê-lo.

  • Psionismo

Velho conhecido do universo sci fi, os poderes da mente são a solução mais comum e mais simples de se usar, estando presente na ficção científica desde os seus primórdios e tendo um grande desenvolvimento no universo das HQs.

É recomendado aqui que haja uma limitação nos tipos de poderes que podem ser usados, evite habilidades transcendentais, esotéricas e similares, tente manter as coisas em um nível mais “x-men”, creio eu que telepatia e telecinese, nas mãos de um narrador e um jogador criativo já cobrem a maior parte dos efeitos que entendemos como magia. Para dar um ar mais místico, torne-o mais raro e pouco estudado, enfatize o choque das pessoas diante de habilidades obscuras ou que desafiam a lógica científica.

Eu discorro com mais detalhes sobre essa linha de poderes no meu artigo sobre as leis da magia (link), sendo que tudo que foi dito ali pode ser aplicado aqui sem o menor problema, inclusive é minha maior recomendação quando se pretende montar um cenário de “Fantasia Espacial”, perfeito para aqueles que querem jogar um RPG Star Wars Style, mas não entendem quase nada do cenário ou então não quer tomar um processinho…

  • Nanotecnologia

Partindo do princípio de que estamos nos referindo a máquinas microscópicas, invisíveis a olho nu, e que elas podem apenas afetar a matéria, já é possível criar efeitos fantásticos ou horrendos. Aqui a chave do “misticismo” é a ignorância da população de sua existência, uso e o estudo dos métodos para manipular essa tecnologia.

Em cenários assim a figura dos Tecnomagos pode ser alvo de temor e admiração como grandes estudiosos do conhecimento do ancestral, podendo ter consigo algum tipo de “relíquia” ou
dispositivo de controle que o permita comandar os nanites, os quais podem estar dispersos no ar e no ambiente (tipo aquele desenho Mutante Rex), ou que ele carrega em “doses” com ele.

Muitos desses “arcanistas” podem entender esse conhecimento como algo místico e sobrenatural, tal qual a maior parte da população, enquanto outros podem ter uma mentalidade mais técnica ou mesmo científica.

Fato é que o princípio da “construção e desconstrução” dos nanites nos permite emular quase que perfeitamente efeitos aparentemente mágicos com uma certa facilidade já que mesmo no âmbito da realidade a nanotecnologia tem aplicações nas áreas médica, biológica, química, estrutural e energética, para citar apenas algumas.

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Preciso dizer mais?

  • Tecnologia como Magia

“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”

Arthur C. Clarke.

Aqui há uma simples substituição de conceitos e termos, onde todo e qualquer feitiço conjurado é na verdade um efeito gerado por um dos dispositivos que o personagem carrega consigo – os quais ele pode não compreender completamente –, sendo capazes de criar efeitos extraordinários e inexplicáveis para o povo comum que os vê.

Você pode descrever uma fantasia usando vários tipos de magia, e ainda assim transformar a história em ficção científica postulando alguma tecnologia altamente avançada, ou uma forma ciência ainda desconhecida para justificar a presença e o funcionamento da magia. A tecnologia pode ser tão avançada que tenha se tornado invisível (como a supracitada Nanotecnologia), e seus efeitos poderiam ser classificados como mágicos, se forem somente descritos assim – tipo o que acontece no RPG Pugmire.

Em termos de uso, em um cenário fantástico não há diferença entre uma tecnologia avançada e a magia, uma vez que em um contexto tradicionalmente análogo ao medieval a tecnologia é magia.

Se pararmos para analisar a ciência da ficção científica é praticamente a magia tentando se ajustar ao limite da razão. Para uma pessoa da era medieval, a tecnologia avançada e a feitiçaria seriam praticamente indistinguíveis

Criando um cenário Cientificamente Fantástico

Uma das formas de se construir uma fantasia científica, é inserir elementos arcaicos ou fantásticos como aspectos culturais ou mesmo ambientais do cenário proposto. No livro Duna, de Frank Herbert, cuja nova adaptação cinematográfica de Denis Villeneuve tarda a chegar, somo apresentados a um universo espacial não muito diferente das space operas clássicas, mas que se organiza de modo feudal, com combates corpo a corpo com armas brancas além de uma forte presença da religião e do misticismo na sociedade e na trama política que nos é apresentada.

Capa do livro Duna, ilustração oficial

Embora Duna seja oficialmente considerado uma Space Opera, a fantasia científica também lhe caí bem, uma vez que temos elementos claramente arcaicos, como a luta com espadas e misticismo/ psionismo das Bene Gesserit, mesclados a uma tecnologia indescritivelmente avançada e estranha a nós leitores. Os elementos arcaicos de Duna, não estão ali por simplesmente estar, mas há uma construção semântica do autor para justificar a construção social que levou aquela sociedade a adotar esse comportamento.

Esse exemplo demonstra que é possível estruturar a narrativa de uma fantasia científica de modo que a presença de castas medievais é a único elemento que a diferencia de uma ficção científica “tradicional”, a exemplo de Fading Suns que por sua vez tem forte inspiração em Duna. É preciso lembrar que a ciência não precisa ser rígida e bem embasada – se for melhor -, elementos pseudocientíficos também transitam facilmente entre as narrativas.

Claro que também podemos nos basear em outras ideias, como a construção de um cenário fantástico com a inserção de elementos sci fi, como o desenho da década de 80 Thundar, o Bárbaro e a HQ nacional Zamor, o Selvagem – que recentemente está sendo relançado por meio de um financiamento coletivo – ou a própria série de livro John Carter de Marte.

Um mundo arcaico de armas afiadas pode ser simplesmente outro planeta cuja civilização decaiu para a barbárie, ou que nunca emergiu dela. Poderes psíquicos tomam o lugar da magia, monstros e seres horrendos podem não passar de formas de vida alienígena, aberrante aos nossos olhos, mas parte de um ecossistema, ou então seres mutantes descendentes de seres sobreviventes de algum tipo de desastre.

Há diferentes formas de construir esse tipo de cenário e geralmente a ideia central costuma se resumir a “e, se…” ou premissas simples como:

  • Um planeta que em passado remoto foi uma base ou colônia de uma alienígena misteriosa.
  • Diferentes raças alienígenas podem ter caído no planeta acidentalmente e ficado ilhadas ali com o tempo.
  • Uma nave de colonos humanos fez um pouso forçado em uma lua habitável na órbita de um planeta gasoso.

A fantasia científica também pode ser um enxerto em seu cenário de padrão, como ocorre em GreyHawk e Golarion (Pathfinder), onde em ambos temos regiões onde naves alienígenas caíram e modificaram o ambiente ao seu redor, criando uma região onde todos os conceitos apresentados anteriormente aqui podem ocorrer.

um dentre tanto dos livros de Pathfinder. Ilustração Oficial

A inserção de elementos supertecnológicos em um mundo de fantasia pode ser muito enriquecedor, e levanta questões muito interessantes sobre o mundo.

  • De onde vieram esses artefatos?
  • Quem os criou?
  • Como funcionam?
  • Eles podem ser produzidos/ manufaturados?

Faça bom uso dos clichês

Há um padrão para mundos de fantasia, no qual eles são ambientados após um grande cataclismo, decadência – ou algo parecido – precedido por um período de grandes conquistas e glória, do qual a população atual do mundo não se recorda completamente, do qual o mundo está se recuperando lentamente. Me interrompa se já tiver visto isso em algum lugar, tá?

Sendo assim, não seria possível que as civilizações passadas tenham alcançado um desenvolvimento tão grande ao ponto de transformar a primitiva magia em uma tecnologia acessível a todos?

Quando o cataclisma aconteceu esses artefatos “mágicos” foram esquecidos e deixados nas centenas de ruínas espalhadas pelo mundo, algumas desativadas, mas outros ainda ativos. A tecnologia e a ciência devem ser tão misteriosas e fantásticas quanto a própria magia quem sabe até mais…

Eis uma breve lista de obras, entre livros, RPGs, HQs e filmes (além de Star Wars) que misturam os gêneros, para que vocês possam se inspirar:

  • Shannara Chronicle – os livros preferencialmente.
  • Thundercats – original e a nova versão de 2011
  • Empire of the East – excelente suplemento para DCC
  • Mutant Crawl Classics
  • Metamorphosis Alfa
  • Gamma World
  • Thundarr, o Bárbaro – excelente animação dos saudosos anos 80
  • ROM, o cavaleiro do espaço
  • Encounter Critical
  • He-Man e os Mestres do Universo
  • Warriors of The Red Planet
  • Swords & Super Science of Xuhlan – esse RPG é Fantasia Científica na veia
  • Cavaliers of Mars
  • Conan, o Bárbaro – principalmente os contos
  • Toda a obra de H.P. Lovecraft
  • Krull – anos oitenta em toda a sua glória
  • Gamma Dragon
  • Arcana of The Ancients
  • Beasts of Flesh and Steel
  • John Carter de Marte
  • Dying Earth
  • Numenera
  • Chronicles of the Future Earth
  • Stargate – tanto o filme de 1994 quanto a série.

Conclusão

Confesso que foi trabalhoso escrever este artigo, e lamento que tenha ficado um pouco longo também (mas prezo por trazer o artigo mais completo possível), contudo espero ter não só trazido a luz e elucidado questões importantes do passado do hobby rpgistico como também de parte da literatura que o inspirou e continua inspirando.

Espero também que você, caro leitor, possa ter com isso obtido uma nova fonte de inspiração para criar cenários e narrativas originais, seja sci fi, low fantasy, weird ou pós-apocalíptico, mas acima de tudo sejam criativos, tentem reinventar a roda e sempre olhem o que já foi feito por um novo ângulo, todos os autores e obras aqui citados fizeram isso, por que não fazer o mesmo então?

Stefan Costa

"Professor de Geografia, leitor voraz, tagarela de muitas ideias e aspirante a escritor."

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